24/10/2015


 

TAO - A Ponte entre Oriente e Ocidente

A aproximação entre a ciência moderna e o velho conhecimento oriental está gerando novas maneiras de pensar o mundo.

 
Por que será que o roçar de asas de uma borboleta na Amazônia pode provocar um tufão na Índia? A mecânica quântica garante que isso é comprovável cientificamente, desde que, no início do século, constatou-se que o nosso universo não é estático: está em constante expansão e movimento. Assim, todos os fenômenos têm conexões uns com os outros. Mesmo quando não mantém uma relação entre si, eles interagem no universo cósmico. Entretanto, isto não é facilmente assimilável pelo arraigado pensamento ocidental.

O mistério que envolve fenômenos aparentemente antagônicos mas que se complementam, só neste século vem estimulando mais fortemente as investigações científicas e as especulações teóricas no plano do conhecimento. A ponto de todas as principais descobertas do século XX estarem intimamente ligadas a essa antiqüíssima maneira de ver a vida pelos chineses: o laser, as telecomunicações, o radar, a engenharia genética, a biologia molecular, a química, a bomba atômica, os chips que deram origem aos microcomputadores, etc.

O lugar do vazio é também o lugar da energia, da matéria.

Para os orientais de linhagem taoísta, essa constatação nunca foi objeto de questionamento. Era, e continua sendo, uma verdade inquestionável. Entretanto, a visão difundida por mestre Lao Tse, o patriarca do taoísmo, há três mil anos, só agora está sendo assimilada no Ocidente. Muito se deve, com certeza, aos movimentos da contracultura dos anos 60, que deram início a uma onda de reverência aos ensinamentos transmitidos pelos mestres do oriente.

Hoje a aproximação dos dois pontos de vista se mostram inevitáveis: tao da física, tao do amor, tao da música, tao da ecologia. De repente, os títulos começam a se suceder, no que diz respeito à livre associação entre os temas recorrentes no universo de pensamento do Ocidente com a filosofia ancestral de origem chinesa. Sinal dos tempos?

A forte suspeita, que já atravessa décadas no nosso século, de que o universo se criou de uma grande explosão dando origem à Terra, às estrelas e aos bilhões de galáxias, foi comprovada por astrofísicos norte-americanos a partir de um satélite da Nasa, que descobriu marcas de nascença de conglomerados de estrelas numa região distante mais de 14 bilhões de anos-luz do sistema solar, hoje menos fantasmas do que eram.

Para os taoístas, que vêm desenvolvendo suas crenças há mais de 7 mil anos, nunca houve dúvidas a esse respeito. Os chineses de tempos imemoriais sempre acreditaram que o universo se criou a partir de uma bolha, ou de um ponto mínimo, do qual se originou o universo manifesto. Para eles, o vazio e o absoluto são a mesma coisa. Na verdade, os cientistas contemporâneos chegaram à mesma conclusão: o lugar do vazio é também o lugar da energia, da matéria.

A matéria em estado de condensação absoluta teria implodido há 15 bilhões de anos, segundo os cálculos dos cientistas, e deu origem, em linguagem oriental, às duas forças máximas que regem a vida: o Yin e o Yang. E dessa dualidade sempre em oposição e, ao mesmo tempo, complementar, surgiram o Céu, a Terra, e o Homem (bem entendido, todos os seres vivos). “O absoluto é o princípio de um sopro que se manifesta em tríplice transparência”, ensina o sacerdote taoísta Wu Jyh Cherng, fundador da primeira sociedade taoísta do país.

A primeira aproximação oficial da ciência com esse misto de filosofia, medicina e religião oriental foi feita na década de 70 pelo físico Fritzjof Capra, numa conferência que se transformou no primeiro dos dois livros que escreveu sobre o assunto, “O Tao da Física”, publicado em 1978. Ele percebeu um espantoso paralelismo entre os enunciados da física moderna com os preceitos da Filosofia oriental.

O universo pode ser concebido como um desdobramento do vazio.

“Capra, na verdade, apenas veio no rastro de todos os grandes cientistas que construíram a base da ciência contemporânea como Einstein, Eddington, Schrodinger, Heisenberg, Born, Bohn”, destaca o cosmólogo Luis Alberto Resende de Oliveira, conferencista da Universidade Livre e pesquisador assistente do grupo de Cosmologia e Gravitação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele, um conhecido defensor da tese de Capra nos meios acadêmicos, acredita que todos os cientistas acima citados podem tranqüilamente ser chamados de místicos, pois todos sempre se preocuparam com a fundamentação metafísica do conhecimento sobre a natureza.

O que marca, segundo ele, a diferença de enfoques entre as físicas clássica e moderna é a descoberta, que vem deste século, de que o nosso universo pode ser concebido como um desdobramento do vazio. “O vazio passou a ser o domínio da realidade onde se dá a mais intensa atividade. O vazio deixou de ser o lugar da ausência para ser o somatório de todas as coisas. É no vazio que as tensões se exercem e os elementos paradoxais interagem”. Na sua opinião, “a idéia que norteava a física clássica de que conhecer o mundo era conhecer as forças que interagem neste mundo fracassou quando começou-se a buscar um maior entendimento do micro e do macrocosmos”.

Só no nosso século, com o advento da mecânica quântica, da física nuclear, da teoria da relatividade, da cosmologia relativística, da teoria dos sistemas longe do equilíbrio, da matemática do caos é que se pôde verificar a afinidade com os preceitos orientais, informa Luis Alberto.

A grosso modo, a física quântica descobriu que os fenômenos físicos se produzem e se reproduzem ora como onda ora como partícula, dependendo da situação. E essa idéia de opostos complementares que interagem é, basicamente, o ovo de Colombo da moderna pesquisa científica. É o que deu origem aos chips de computador, à engenharia genética, à biologia molecular, ao laser, à telecomunicação, “em suma, a absolutamente tudo”. Inclusive à bomba atômica.

“Acredito até que a ética do taoísmo seja muito superior à da ciência, cujo poder está nas mãos dos Estados e os cientistas nada mais são que serviçais do Estado.”

É nesse ponto que o paralelismo entre o taoísmo e a física esbarra em controvérsias. Para o cosmólogo José Salim, professor e pesquisador do mesmo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, atualmente no Canadá, esta aproximação dos dois conceitos faz parte da velha tendência do pensamento científico ocidental de querer se apropriar da “verdade”. Na sua opinião, a questão da dualidade na física realmente se parece com os conceitos orientais de Yin e Yang, mas são de natureza diversa. “No caso da física, quando um impulso de energia se propaga levando energia de um lugar para outro, envolve uma questão ética totalmente diversa da do taoísmo”, diz ele. “Acredito até que a ética do taoísmo seja muito superior à da ciência, cujo poder está nas mãos dos Estados e os cientistas nada mais são que serviçais do Estado”, acrescenta.

A ciência só quer uma coisa, acredita: a dominação. “Mesmo que seja no nível mais bem intencionado possível”. Exemplo: “Por mais benefícios que a ciência possa trazer, como a bomba de cobalto para combater o câncer, ela continua sendo instrumento de dominação, só que da doença. Na medicina chinesa (parte do taoísmo), através da acupuntura, por exemplo, o que se busca é a prevenção. O objetivo é estimular o aparelho imunológico. A acupuntura não serve para dominar a doença. Não faz intervenção violenta. E o taoísmo, por herança mística, não busca a dominação do mundo, mas a compreensão de suas leis e como administrá-lo com sabedoria.”

O professor Luis Alberto não vê o menor sentido nesta discussão: “Acho que só no próximo século, quando se aprofundarão os estudos entre o pensamento (inteligência, subjetivismo, psiquismo) e a existência (materialidade, concretude, substância), é que se poderá compreender essa fantástica ressonância.”

A própria busca do ser humano pode chegar a uma mesma conclusão comum.

Surpreendentemente ou não, para o sacerdote taoísta Cherng, não há nenhuma intenção por parte do Ocidente em querer transfigurar o taoísmo, ou se apropriar do taoísmo. “Vejo como um fenômeno absolutamente natural da compreensão humana. Com todas as diferenças de língua, de cultura, inclusive levando-se em conta a demora da transmissão de conhecimento para o ocidental do que consiste o pensamento oriental, seja o taoísmo, o budismo ou o que for. Para se compreender qualquer coisa, deve-se partir do ponto em que você está. Então é natural que o ocidental tente compreender o Oriente através de uma linguagem inicialmente do próprio Ocidente. A partir daí, pode surgir uma série de linguagens que já não são mais nem semelhantes às do Ocidente antigo, nem do próprio Oriente”, diz Mestre Cherng que é professor de meditação e de teoria taoísta. Na sua opinião, esse encontro do Oriente com o Ocidente “demonstra que a própria busca do ser humano pode chegar a uma mesma conclusão comum. Mesmo quando não se admite a influência no raciocínio ocidental de algum conceito oriundo do conhecimento místico ou das filosofias orientais, mas como o resultado de uma busca natural”, conclui.

A conclusão não é necessariamente racional, nem irracional, mas a soma dos dois.

Cherng faz uma pequena síntese do que é o taoísmo:

O taoísmo não tem nenhuma concepção radical. Segue o conceito da naturalidade. É absolutamente natural ele tentar entender tudo o que acontece de uma forma racional, lógica, pensada e explicada. Mas o taoísmo também fala que existe um outro lado irracional, não-pensante, que transcende o pensamento, que é abstrato, que também faz com que compreendamos as coisas. Não através das linguagens limitadas, da lógica. A conclusão não é necessariamente racional, nem irracional, mas a soma dos dois.

Não é preciso renunciar a um ou a outro. Basta deixar ambos coexistindo.

O taoísmo fala muito de se viver todas as coisas simplesmente, e não intencionalmente. Busca compreender e viver o absoluto, viver além das linguagens, além dos limites. Compreendemos o Tao através de vivência, mas não deixamos de trabalhar com a especulação mental. Meditações e mantras são instrumentos para se chegar a uma vivência. Você usa todas as linguagens para chegar além das linguagens. Você usa palavras, meditações, teorias, cantos, para chegar em não palavras, em não conceitos, em não teorias, e chegar ao absoluto, que é uma espécie de vazio. Mas esse vazio não é ausência de alguma coisa. Ele carrega a potencialidade de todas as coisas.

Há algo completamente entorpecido, anterior à criação do céu e à terra, quieto e ermo, independente e inalterável. Move-se em círculo e não se exaure. Pode-se considerá-lo a Mãe sob o céu. Tao Te Ching, cap. 25

_____ SOBRE A AUTORA _____

Eva Spitz é jornalista

01/10/2015


O Eu e a garrafa sem fundo


Se o arqueiro atira uma flecha no vazio, em que ele vai acertar? Vencer o ataque através do vazio é o primeiro fundamento da estratégia chinesa, ou seja, trabalhar com a ausência do ego.

No estudo da estratégia, se diz que os grandes mestres de estratégia trabalham com o princípio da ausência do ego. Se as pessoas não tivessem ego, não haveria luta entre elas. Se, por exemplo, você tem um profundo apego por chocolate, quem na verdade tem esse apego? O seu “eu”, que é o seu ego. Com a ausência do ego, não vai existir o apego ao chocolate. Nesse caso, você poderia até comer o chocolate, mas não teria apego a ele, não seria viciado. Apego é aquilo que você quer. Mais do que isso. É algo que você não consegue deixar de querer. Em outras palavras, apego é vício.
Nós somos viciados em inúmeras coisas. Existem pessoas que são viciadas, por exemplo, em cuidar de outras pessoas. Existem aquelas viciadas em coca-cola, em dinheiro, em ideologia, em sexo e em inúmeras outras coisas. Todos nós temos alguns vícios, de níveis e tipos diferentes. E existem vícios que, normalmente, nem são percebidos como vícios.
Como você poderia não ter vícios? Não tendo um ego, não tendo um “eu”. Se você não tem esse “eu”, como poderia ficar viciado em algo? A ausência do ego faz com que você se torne vazio e, se você é um vazio no sentido da quietude interior (a quietude interior faz com que nos tornemos vazios por dentro), você deixa de ser um alvo para o outro. A ausência do ego coloca seu espírito em estado de quietude, de transparência. Se o arqueiro atira uma flecha no vazio, em que ele vai acertar? Em nada. Então, se você esvazia seu coração, toda força que o seu adversário mandar na sua direção, por mais perversa que seja, não irá acertar em você.

Muitas vezes, você está numa festa ou num lugar público e percebe que, quando vira de costas, uma determinada pessoa dirige a você um olhar insistente e negativo. Você, então, poderia lançar mão de uma técnica muito usada por taoístas nessa situação: respirar umas duas ou três vezes prestando atenção ao ritmo da sua respiração para que ela fique tranqüila; não deixar transparecer no rosto nem nas atitudes externas que percebeu o que está acontecendo; e começar a esvaziar seu interior, imaginando que você todo está se tornando um vazio, restando do seu corpo apenas uma silhueta.
Nessa hora, a energia desconfortável daquele olhar vai passar por você como se estivesse passando por um vazio. Algum tempo depois, você vai notar que aquela pessoa está começando a sentir um cansaço imenso, e vai ficar cada vez mais cansada até desistir de olhar para sua direção.

Mas se você receber esse olhar e, por não estar esvaziado, for atingido por ele, ou seja, se a pessoa conseguir acertar você com aquela energia perversa, essa mesma energia vai voltar para ela e realimentá-la.
No caso contrário, se o olhar dela não conseguir acertar você, ela vai estar, apenas, jogando energia fora. É como se ela estivesse atirando no vazio: as balas do revólver vão acabar e ela não terá acertado em alvo algum, em nada.
Essa técnica de esvaziamento é muito fácil de ser praticada. Ela é muito usada para você não precisar lutar contra a pessoa que está dirigindo a energia perversa para você. E praticando esta técnica você vence a energia perversa sem precisar lutar contra a pessoa que a lançou.
Se essa pessoa ficar usando sua força contra o espaço, vai acabar se cansando. É como dar socos no ar: a pessoa vai se cansar e terminar por ser derrotada por si mesma sem que você, que praticou a técnica do esvaziamento pela respiração, precise sacar uma arma para brigar com ela.
Esse é exatamente o ensinamento de como vencer uma ação através da não-ação. Vencer o ataque através do vazio é o primeiro fundamento da estratégia da guerra, ou seja: trabalhar com a ausência do ego.

Raciocine desse modo: se eu não existo, quem poderia estar me atingindo? Mas é preciso tomar cuidado porque ausência de ego não significa não tomar uma atitude quando ela for necessária.
Se você não tiver ego, mesmo que alguém tente lhe ofender, não vai conseguir porque o eu não existe e, portanto, você não pode ser aquilo que a pessoa disse ser. Ela não vai estar falando sobre você – então, vai estar falando sozinha, sem conseguir lhe ofender. No entanto, isso não pode ser um mecanismo de convencimento intelectual. Isso tem de ser o resultado de um esvaziamento interior, de um esvaziamento do eu.
Mas como a ausência do eu é demonstrada na prática, na vida cotidiana? Por meio da tolerância, da aceitação e do coração esvaziado. Uma pessoa que não seja tolerante, acaba por preencher rapidamente o seu limite. Até mesmo popularmente, quando alguém não consegue aceitar mais nada, adota uma expressão facial que demonstra que seu limite foi atingido: “Eu estou cheio, não tenho mais capacidade de tolerar isso, não vou mais tolerar isso”, é o que costuma dizer quem acaba por preencher rapidamente seu limite.

Numa situação como essa, nós nos tornamos “cheios” porque temos um limite que funciona como uma espécie de fundo de garrafa – ou fundo de copo –, que vem a ser, exatamente, o nosso ego. O ego humano é o fundo do nosso copo, da nossa garrafa. O ego faz com que nossa vida, mesmo que seja parcialmente esvaziada, tenha um limite. E a suprema abundância só é adquirida quando nós retiramos esse fundo da garrafa. Desse modo, tudo entra e tudo sai pela garrafa sem fundo e, por isso, a suprema abundância não se esgota.

Um mestre antigo dizia que nós deveríamos saber receber tudo o que vem do mundo e repassar tudo de volta para o mundo. Dessa maneira, a nossa vida torna-se algo vazio e esse vazio permite que a vida flua dentro de nós. É desse processo que vem a alegria sem euforia e a tristeza sem depressão. Vêm coisas saborosas e amargas, e tanto umas quanto outras entram e saem de nós como se estivessem sendo derramadas numa garrafa sem fundo.

Assim, a nossa capacidade tanto de receber quanto de dar nunca termina e, com isso, a vida se torna mais leve porque, nesse momento, deixamos de fluir na vida para deixar a vida fluir em nós. A partir dessa hora nós nos transformamos e ficamos como se fôssemos um tubo por onde a água, que simboliza a vida, passa por nós e vai adiante, fluindo sem parar porque não existe um fundo, um limite que a represe.
De modo contrário, se nós tivermos um fundo, como uma garrafa ou um copo, a água não vai fluir. Ela vai encher essa garrafa até seu limite, depois transbordar, e terminar levando o copo ou a garrafa junto com ela, em vez de passar e sair. Então, a pessoa que tem o ego muito forte é levada pelo destino, em vez de permitir que o destino ou a vida passe por ela.
Quanto mais esvaziados o copo ou a garrafa, mais a água vai fluir e passar dentro de nós, mais o destino vai passar por nós, e seremos donos desse destino. Quanto menos esvaziados, mais obstáculos a água vai encontrar para fluir dentro de nós e, nesse caso, os papéis serão invertidos: nós vamos passar por dentro vida e ela é que será a dona do nosso destino.

Precisamos nos esvaziar para podermos nos tornar receptivos. Sendo receptivos, podemos de fato abraçar todas as coisas e, ao mesmo tempo, permitir que todas as coisas se desenvolvam e se transformem de modo natural e fluido.

O homem iluminado é o que possui a abertura interior.


Mestre Wu Jyh Cherng - Sociedade Taoísta do Brasil